Carta à Pfizer expõe gestão ineficiente, dizem especialistas

As críticas públicas da gestão Bolsonaro à proposta da Pfizer para venda de vacinas contra covid-19 foram vistas como atestado da inabilidade para plano amplo e eficiente de imunização

  • Data: 25/01/2021 09:01
  • Alterado: 25/01/2021 09:01
  • Autor: Redação ABCdoABC
  • Fonte: Estadão Conteúdo
Carta à Pfizer expõe gestão ineficiente, dizem especialistas

Governo afirma que oferta da Pfizer causaria frustação aos brasileiros

Crédito:Reprodução/Pfizer

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O temor agora é que a guerra de narrativas afaste outras farmacêuticas com quem o Ministério da Saúde ainda poderia obter mais doses, num momento de alta de casos e óbitos.

A pasta de Eduardo Pazuello divulgou no sábado nota acusando a Pfizer de buscar “marketing” na negociação e indicou pontos que, na visão do governo, pesaram contra o acordo com a farmacêutica americana. Esses obstáculos são contestados por especialistas. A Pfizer não comenta. A sucessão de trapalhadas do governo na pandemia levou partidos a discutirem o impeachment do presidente da República.

Uma das razões citadas pela pasta é o fato de a Pfizer só ter acenado com dois milhões de doses no 1º trimestre. “Para o Brasil, causaria frustração“, disse a Saúde, “pois teríamos, com poucas doses, que escolher, num país continental com mais de 212 milhões de habitantes, quem seriam os eleitos a receberem a vacina”, prosseguiu.

Mas Pazuello foi na última sexta-feira ao Aeroporto de Guarulhos para recepcionar a mesma quantidade de doses da vacina Oxford/AstraZeneca que o ministério importou da Índia para acelerar a imunização, após o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), sair na frente com a Coronavac.

A carta encaminhada pelo CEO mundial da Pfizer, Albert Bourla, ao presidente Jair Bolsonaro e alguns ministros em 12 de setembromostra que a empresa fez um apelo para que o governo fosse célere em fechar um acordo com a empresa devido à alta demanda mundial pela vacina.

“Quero fazer todos os esforços possíveis para garantir que doses de nossa futura vacina sejam reservadas para a população brasileira, porém celeridade é crucial devido à alta demanda de outros países e ao número limitado de doses em 2020”, dizia o documento, segundo divulgado pela emissora.

Em nota, o governo confirma ter recebido a carta e ter feito reuniões com a empresa, mas diz que “cláusulas leoninas e abusivas que foram estabelecidas pelo laboratório criam uma barreira de negociação e compra”.

Entre as cláusulas, estão que o Brasil fizesse um fundo garantidor em conta no exterior e que fosse assinado um termo que isentasse a empresa de responsabilidade por eventuais efeitos da vacina.

O governo também aponta como impeditivo a opção da empresa para que a solução de possíveis conflitos fosse com base em leis de Nova York. E volta a citar a quantidade de vacinas, prevista de 500 mil doses no primeiro e segundo lote e de 1 milhão no terceiro – chegando, assim, a 2 milhões iniciais.

A nota, porém, não informa o total que era negociado junto à empresa, previsto em 70 milhões de doses.Para o governo, “representantes da Pfizer tentam desconstruir um trabalho de imunização que já está acontecendo em todo o país, criando situações constrangedoras para o governo brasileiro, que não aceitarão (sic) imposições de mercado”.

Em meio às críticas, a nota diz ainda que “em nenhum momento fechou as portas para a Pfizer”, mas que aguarda “posicionamento diferente do laboratório”.

“Merece destaque o fato de que, além dos aspectos já citados, é a única vacina que precisa ser armazenada e transportada entre -70°C e -80°C, prevendo um intervalo de três semanas entre primeira e segunda doses. Além disso, o laboratório não disponibiliza o diluente para cada dose – que ficaria a cargo do comprador.”

“Além disso, a Pfizer ainda não apresentou sequer a minuta do seu contrato – conforme solicitado em oportunidades anteriores e, em particular na reunião ocorrida na manhã de 19 de janeiro – e tampouco tem uma data de previsão de protocolo da solicitação de autorização para uso emergencial ou mesmo o registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária”.

Em 2020, o governo chegou a negociar com a Pfizer 70 milhões de doses para 2021, mas a compra não avançou e o Brasil perdeu lugar na fila, apesar de alertas da farmacêutica para a alta demanda. “Dois milhões de doses (da Pfizer) eram pouco em setembro, (mas) sexta-feira recriaram uma ‘fonte luminosa’ e um ‘coreto’ para receber a mesma dosagem (da Oxford”, criticou o epidemiologista Paulo Lotufo, da USP, no Twitter.

“Foi tomada decisão consciente. Não negociaram, mas não previram que isso ia gerar muitas críticas”, diz o professor do Insper e doutor em Economia Thomas Conti. “Minha maior preocupação é que desviar a responsabilidade para o laboratório pode afastar outros fornecedores. O governo politizou a relação com a Pfizer.”

A vacina da Pfizer tem logística complexa, pois precisa ser armazenada entre 70°C a 80°C negativos. Lotufo, porém, listou medidas que permitiriam aproveitar as doses, como enviar lotes de vacina a capitais do Norte e fazer aplicações em hangares e salas de aeroporto, esvaziados na pandemia. Para ele, esse plano dispensaria “superfreezers”, pois as doses sairiam da caixa térmica diretamente para o braço das pessoas. “Se (o envio das doses) ocorresse em dezembro, hoje a catástrofe estaria minimizada no Norte”, escreveu.

Carla Domingues, epidemiologista e chefe do Programa Nacional de Imunização (PNI) de 2011 a 2019, diz ser difícil avaliar o contrato, pois a íntegra não foi divulgada, para ver se há “cláusulas leoninas e abusivas”, como diz a Saúde. Mas questiona o fato de sermos o único país a ter problema para negociar com a Pfizer, enquanto americanos e europeus compraram. “A dificuldade é porque o Brasil não se planejou para essa vacina, de enorme complexidade.”

Conti ainda vê inconsistências na fala do governo: entraves como a ausência do diluente (que seria soro fisiológico comum) e de reposição do gelo seco para manter frascos na temperatura correta seriam resolvidos com planejamento. Sobre eximir a fabricante de responsabilização civil em caso de efeitos adversos, ele diz que essa cláusula já existe há décadas em países desenvolvidos, inclusive para outras vacinas, e é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Fundo

Nos Estados Unidos, o Programa Nacional de Compensação por Danos de Vacinas existe desde 1988 e indeniza quem eventualmente sofra efeitos colaterais após tomar vacinas cobertas pelo fundo (como as de difteria, tétano e hepatite A e B). De 2006 a 2018, foram aplicadas 3,7 bilhões de doses, e só 5.317 compensações pagas.

O fundo, diz Conti, foi criado após uma onda antivacina ter aumentado ações contra farmacêuticas, desestimulando a fabricação e reduzindo a oferta de imunizantes. Para ele, o Brasil poderia criar um fundo similar. 

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